sexta-feira, 5 de agosto de 2011

E p i s ó d i o s



                               ( CLIC na seta play, abaixo, e leia com música )




A grávida

Eu precisava urgentemente de um médico para lhe falar de umas terríveis dores e com sua ajuda me livrar de incômodos que diuturnamente me atormentavam e, para tanto, pulei da cama bem no raiar do dia e cheguei cedinho ao posto de saúde.
Lá, numa fila única que se estendia a metros, havia algumas gestantes aguardando o atendimento da doutora Rosana: uma respeitável ginecologista que diariamente cuidava das grávidas e de seus fetos, e que era bem conhecida por seus momentâneos maus-humores. Ela costumava se esbravejar com qualquer pessoa e por qualquer motivo, mas fora isto era uma dulcíssima pessoa.

O atendimento

Peguei uma senha que me destinava ao clínico geral e sentei-me numa desconfortada cadeira da sala de espera onde fiquei de olhos no letreiro vermelho, à espera e à escuta; com a audição a toda prova.
As gestantes se acomodaram em seus assentos e logo se mostraram impacientes e indignadas com a demora de uma delas lá dentro do consultório da doutora, de onde saiam tonitruantes trocas de palavras e insultos ofensivamente calorosos, que ora se alteravam e ora se abrandavam, mas ninguém, cá fora, sabia o porquê de tanta troca de palavras fervorosas entre as quatro paredes.
Todos, na sala de espera, se entreolhavam admirados e em gestos denunciavam seus repúdios pela esquisitice do comportamento da digna doutora com sua delicada paciente, e vice-versa; mas ninguém se atrevia a proferir qualquer tipo de comentário sobre a duvidosa questão. O que mais se via eram cabeças com movimentos oscilatórios demonstrando sinais de desagrado e de desaprovação pelo vozerio que não se podia deixar de ouvir naquele ambiente hospitalar, onde, numa parede caiada um cartaz com uma foto de uma enfermeira, dignamente vestida, tinha o dedo indicador sobre a boca alertando a todos para se ter silêncio no local.
Na certeza de que algo ruim iria acontecer, o segurança do posto, um mulato alto e bem corpulento que ficava de guarda na porta principal e que orgulhosamente exibia sua farda azul-marinho bem engomada e passada, e que ostentava um intimidante cassetete, se aproximou calmo e sorrateiro até a porta da doutora Rosana e lá montou vigília, ereto, e na mais extrema sisudez tal qual um admirável sentinela da honorável rainha londrina, mas, de vez em quando ele sacudia sua cabeça num afirmativo gesto de descontentamento e repúdio pelos impropérios que, às gritarias, ecoavam na consulta ginecológica.
Cá fora ninguém sabia de nada, só os maliciosos olhares se mexiam como a indagar: por que tamanho alarido? Onde já se viu uma discórdia tão brava entre um médico e seu paciente? Que estaria desrespeitosamente acontecendo lá dentro?
Inesperadamente o silêncio do ambiente foi quebrado com a espantosa exclamação de um indivíduo que há pouco gemia de dor e que deu trégua a seus gemidos para encarar o guarda e, a ele se manifestar, dizendo:
- Que diabo está acontecendo nesse posto, seu guarda? Isso vai acabar é em merda! – e, como nada ele pode ter como resposta, simplesmente voltou a gemer.
O mistério do palavreado só foi desvendado quando a tal consulente abriu a porta e apareceu histericamente xingando a doutora de imbecil, cachorra, maluca, filha da puta, doutora de merda, etc. e tal, e assim prosseguia com muitos outros adjetivos indignos à honra da ilustríssima doutora, e que, não obstante, virando-se para as pessoas ali presentes ela levantou a blusa e, estapeando sua própria barriga, assim urrava:
- Vejam só: essa desgraçada (a médica) está dizendo que não estou grávida! Mas vejam o tamanho da minha barriga, espiem! Vejam que barrigona! Estou grávida, ou não?
Todos, simplesmente olhavam-na em silêncio. 
E ela prosseguia: 
- Isto que vocês estão vendo é um bebê que se mexe o tempo todo e não o que aquela cachorra acabou de me dizer!  Isto aqui (batendo na barriga) é um filho querido de meu amado Azenon e nós o fizemos com todo amor!
Nesse ínterim, a doutora, que a tudo ouvia, saiu do consultório para pessoalmente acabar com o descontrolado discurso da barriguda e, aos gritos de: deixa-me falar, me deixa falar, eu quero falar, ela se defendeu assim narrando:
- Gente, olhe! Olhem só a loucura dessa mulher!  -  e apontado o dedo indicador, proferiu aos berros: - eu já lhe falei que não existe nenhuma criança nessa sua barriga e que isto, também, não é gravidez psicológica. Os exames de laboratório acusaram que seu intestino está cheio de áscaris, de ancilóstomos, de solitárias, enfim: de lombrigas, entendeu? Entendeu? – e concluiu: é bom você tomar o vermífugo que indiquei e... ponto final!  Agora saia já daqui, suma, vá pra sua casa e me deixe trabalhar!
A mulher não gostou da exposição sobre a sua “gravidez” e partiu animalescamente pra cima da doutora.  Ela queria, por todos os meios, dar segurança e dignidade ao seu "quase" bebê. Foi um deus-nos-acuda. Cadeiras voaram pra todo lado e um inesperado corre-corre foi inevitável. O sujeito que gemia de dor misteriosamente desapareceu do ambiente e, até mesmo o segurança, que há pouco se enchia de pompa com sua bem apresentável farda azul-marinho, nada pode fazer além de mostrar seu temível cassetete para a brava barriguda e repetitivamente lhe dizer: calma minha senhora, calma minha senhora.....calma! ......calma!
O zunzum só acabou depois que a barriguda saiu lacrimosa e resmungante na direção da rua, aonde, aos ataques das verminoses ela gritou, rodopiou e caiu desmaiada na imunda lama da sarjeta.
Apesar de ser a vítima de fartos impropérios, foi a própria doutora que, em seu carro, socorreu a briguenta até o hospital, onde lá foi internada e consequentemente libertada do inconfortável criatório de lombrigas.
O mais intrigante é que saí de casa muito cedo só para assistir aquela pândega e voltar com minhas terríveis dores pois, naquele dia o clínico geral faltou ao trabalho.        maio de 1989 / SP
                                       





TÁ TUDO ERRADo

“Nada aqui é similar à realidade”


                   Todo dia eu passava - de ônibus, é claro! - por uma certa rua com destino ao meu local de trabalho e em uma determinada casa eu sempre via uma placa pregada na parede e nela algo escrito. A velocidade do ônibus não a me permitia ler e minha curiosidade aumentava. A cada dia a coisa ia ficando mais séria: o ônibus passava rápido e eu ficava de olhos arregalados para ver se conseguia ler aquela mensagem, mas... nada! Já vivia aperreado com aquela obsessão. Era uma inquietação nada plausível, pois eu necessitava saber o que ali estava escrito e… ponto final! Virou uma questão de honra. Não sou analfabeto, raios! Como não podia saber do quê se tratava?
Depois de dezenas de tentativas em vão, resolvi por a coisa em prática: puxei a cordinha que aciona o aviso de desembarque de passageiros e, sem ligar para o azar, principalmente para o meu atraso ao trabalho, desci do ônibus, e a passos decisivos fui de encontro àquela casa. Ou eu lia aquilo, ou não teria paz, e somente assim acabaria com minha doentia curiosidade. – Comigo é pau-pau; pedra-pedra. – já fora do ônibus falei orgulhoso, tentando visualizar a curiosa inscrição pregada na parede.
Aproximei-me o máximo possível, sempre limpando as vistas para desembaraçar a visão. A placa estava lá na parede, atrás de uns arbustos floridos e perfumados.
– Tá difícil! – reclamei soletrando a mensagem. – Que diabo está escrito ali? Caramba, aquilo parece um hieróglifo! Estou me sentindo um verdadeiro Champolion, é… Ele foi aquele maluco que decifrou os enigmáticos cuneiformes da Pedra da Roseta, lembra? Grande Champolion! Grande Roseta! – Monologuei há uns cinqüenta metros da dita parede, mas, devido às letras serem muito garranchadas, ainda não dava para eu ler nada. Era precisava chegar bem mais perto e, além do mais, o dia ainda não tinha amanhecido totalmente e toda a luz era sutil. Minhas mãos permaneciam geladas e o ar de minha expiração saía fumaçante, pois o frio daquela manhã invernosa era um dos mais rigorosos dos últimos anos, e eu só tremia: não sei se de emoção por matar a vontade de ler a dita placa, ou por culpa dos cinco graus centígrados que me envolvia. O certo é que eu começava a me sentir um verdadeiro idiota.
                  Lá na frente o meu ônibus se afastava barulhoso e sobrava na minha cara uma fumaça fétida, negra e misturada com a névoa. A visibilidade estava comprometida e a umidade do ar me provocava espirros. Comecei a admitir que estava realizando uma imbecilidade.
                  E o meu emprego? Nem quero ver a cara do chefe! – Pensei.
                  – Até que enfim, hei-me! Estou aqui! – Falei pra mim mesmo enquanto me contentava com aquela inútil aventura sonorizada com latidos de cachorros da redondeza.
Para melhor decifrar os garranchos da placa, por várias e várias vezes, a fio, eu li e reli soletrando, e por fim balbuciei o seu extraordinário contexto, onde se lia:  
– Que letra desgraçada! Quem foi o imbecil que escreveu essa barbaridade? Pelo jeito esta tranqueira nunca esteve numa escola. Tem nada não! Eu é que sou um grande idiota. Não quero comprar nenhuma porcaria de saco nem cheio nem vazio e que vá tudo pros quinto dos infernos! – Mas… Que diabo estou fazer aqui?
Convencido das burrices que acabara de realizar, me dirigi ao ponto de ônibus, mais próximo, que se distava a mais de meia hora de caminhada.
                 Já era quase metade da manhã, quando eu....
                  – Bom-diiiiia seu Plínio! – desconfiado, cumprimentei o chefe. Aquele, se não me engano, seria o meu oitavo atraso do mês. E a cara dele não era nada amistosa.
– Mau dia seu Juliano! – ele respondeu sério, de soslaio; entregando-me um papelzinho com a seguinte mensagem:
“JULIANO, VOSSÊ ISTÁ DISPIDIDO. AGORA PEGUE SUAS COISA E VÁ PERCURÁ CEU DIREITO. INTENDEU?
           Depois seu Plínio saiu resmungando:
         – Tá tudo errado! Tá tudo errado!




         O quebra-galho
    A alegria era contagiante em todo o Brasil e o povo delirava com uma música que enaltecia os brasileiros dizendo “estarem todos em ação”.
        Eu era, sem dúvida, um fragmento dessa euforia em terras cariocas. Um recém-chegado das caatingas que nada entendia da vida metropolitana, e por isso estranhava tudo ao meu redor.
        Lembro-me de que a vida não estava, assim, tão risonha para mim, que vivia desempregado, desdentado, duro e dependente de uma oportunidade.
        Se bem me lembro era um domingo, e nele o último jogo da Copa: a decisão final: Brasil e Itália. E eu não tinha rádio nem TV.
        Nesse dia eu estava na casa de um irmão, um fuzileiro naval que eu acreditava não necessitar fazer nenhum tipo de “bico” para complementar seu soldo, mas, mesmo assim, ele havia dado uma estudadinha em alguns livros de eletrônica e se auto-intitular técnico de rádio e de tv.
       
         A notícia de que no bairro havia um consertador de televisão se espalhou rapidamente pela vizinhança, pois um aviso com a tal indicação permanecia afixada na fachada de sua moradia e isso lhe afluía alguns minguados fregueses. E foi naquele inesquecível domingo, em que a cidade já amanheceu inquieta e com um clima de festiva euforia, que apareceu um indivíduo e contrata o meu irmão para consertar seu aparelho de televisão, exigindo urgência urgentíssima, pois nele veria a decisão da Copa do Mundo.
        – Tá legal! Tá legal! Lá para uma da tarde estarei lá! Fica frio! – E esfregando as mãos de tanto contentamento meu irmão selou, verbalmente, o compromisso com o tal indivíduo, e depois virou-se para mim dizendo:
        – Mano, vai chover um dinheirinho! Vai cair uma bela grana!
        Os ponteiros do relógio corriam enlouquecidos rumo às treze horas - hora do dito compromisso – e, num piscar de olhos lá estávamos subindo a escada do prédio na direção do apartamento do fulano. Bem rápido atingimos o terceiro andar onde o encontramos sentado no último degrau da escada bebendo cachaça no gargalo da garrafa e dizendo estar pregado ali por mais de horas, e que tudo era só por nossa culpa. Notei que o sujeito cantava sem parar a tal música alusiva à seleção canarinho e mal respondeu ao nosso boa-tarde, nos foi ordenando:
         – Entrem, e só saiam daí com essa porcaria funcionando, beleza?! – Disse e logo voltou a lamber o gargalo da garrafa.
         Atendemos e adentramos encabulados com a receptividade: algo inesperado iria acontecer.
         O homem já estava visivelmente bêbado e só cantava, repetidamente, apenas um trecho da tal música, onde nela se dizia: "... todos juntos, pra frente Brasil, salve a seleção".
         Deixou-nos no interior do apartamento e voltou para os degraus da escada lambendo o gargalo, cantando, e, às vezes, narrando imaginários jogos de futebol. Vez em quando ele urrava por um “gol” inexistente. Parecia louco, mas era só cachaçada e alegria à sua maneira.

           O conserto

        Meu irmão desparafusou o televisor e se pôs a mexê-lo como se bem o entendesse. Parecia até familiarizado com o velho aparelho valvulado.  
        Mexe daqui, mexe dali, e de repente ele encostou a ponta da chave de fendas onde não deveria e uma bruta explosão balançou o andar do prédio. A fumaça negra escapou da TV com um odor insuportável e, enquanto isso, nós nos arremessamos para as paredes. 
        O sujeito saiu da escada e, cambaleando, apareceu na sala tal qual um fantasma vindo do além. Ele ficou por um instante com a gargalo na boca; empalidecido e abestalhado no meio da fumaça. Parecia nada entender. Mas quando sua “ficha caiu” ele abriu uma gaveta de um móvel e dela retirou uma faca-peixeira, e nos encurralou no  canto da sala, urrando:
         - O quê você fez com a minha TV seu fila da puta? Você é louco, cara? Você só sai daqui se essa p--- funcionar, entendeu?
         Lá fora era tudo carioquismo: agitação e folia.
         O Rio de Janeiro estava freneticamente contente e estupidamente contagiante com o início do jogo decisivo da
taça Julis Rimet, e a todo momento só se ouvia estampidos, gritarias e buzinaços. Era tudo uma única loucura.
         Subitamente um silêncio sepulcral apoderou-se da cidade maravilhosa e o motivo era explícito: o jogo estava em jogo. Era ganhar ou ganhar; jamais perder: diziam os cariocas.
         – Escute aqui moço, por favor, me escute! – implorava meu irmão, tentando dialogar ou mesmo desviar a atenção do bebum que não nos dava trela, e nesse entrave de perfeita discórdia ficamos a trocar inamistosas palavras e discutindo o improvável. O falano, com a mão esticada, nos mirava com a faca em punho, e nós, em pânico, procurávamos um meio óbvio e prático de escapulirmos daquele mini inferno.
         – Calma moço, calma! Beba mais uma pinga! - Era o que eu dizia na tentativa de fazê-lo raciocinar. Mas o bêbado virando-se para o meu irmão, cambaleou, e, atropelando sua própria fala, discursou:
         – Você não é um electroténico? Você não se diz um ténico? Então arrume essa p.. dessa TV antes de acabar o jogo, porque eu quero ver o Brasil ganhar, entendeu, seus filhos da p---? E acrescentou: ta todo mundo vendo essa p... desse jogo na TV, menos eu! Agora, ou vocês arrumam, ou morrem! 
         Meu irmão, quase se borrando, retrucou:
         – Moço, meu irmão tem nada com isso não! Eu é que sou um quebra-galho, fica frio!
         Aquela foi a cena mais horrível já vivida.
         Num belo instante o sujeito descuidou da minuciosa atenção e nós escapulimos pela escada abaixo, menos ele, que estava bêbado demais para isso.
         Amedrontados corremos pela rua e, mal chegamos em casa, ouvimos a cidade explodir num imenso berro:
         Goooooool  Goooooool
         Goooooool do Brasil! Goooooool do Brasil!
         Pelé, Pelé!
         E eu fiquei a imaginar a cara do tal freguês sentado na frente da sua velha e esfumaçante TV, sem ter nada, nela, a ver.


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A Núpcia 
(relato do meu irmão Leonardo – in memória)


              No decorrer da década de 1930 dois adolescentes namoravam sentados no avarandado da casa ao som de deliciosas risadas e de inúmeros cochichos, ao tempo em que o olhar ativo de dona Marlene fitava incessantemente vigilante.

 – Se teu pai estivesse aqui essas risadaiadas logo logo iam acabar – resmungou dona Marlene chamando a atenção de Margarida, a doce Margá, como era amavelmente chamada pelo pai Bastião que se enchia de orgulho com a figura angelical da filha que Deus lhe dera – uma belezura de menina -, como carinhosamente a definia.

  – Até parece que a senhora nunca namorou, não é mesmo dona Marlene? – interpelou Abelardo em tom de brincadeira e de boa aproximação com a futura sogra.

  E as risadinhas perdiam-se no ar em meio àquele doce e harmônico momento de ternura e carinho, e assim o tempo foi passando, passando, até que, certo dia.....

  – Dona Marlene, será que a senhora nos deixaria ir colher umas cajazinhas pra fazer um refresco? É um instantezinho de nada e, já já  nós estaremos de volta. E apelou dizendo: ta fazendo um calor danado, sogrinha! deixa?

  Dona Marlene mostrou-se truculenta e dá-lhe alguns nãos, mas depois de várias insistências de ambos os namorados, ela cedeu aconselhando-os:

  – Ta bem, ta bem! Eu deixo! Só que não quero imaginar o que possa acontecer se encontrarem o Bastião pelo caminho! Se o avistarem se esquivem dele! Estão avisados: é um pé lá, e o outro cá! Entenderam? Agora vão!

  O casal saiu radiante e se desmantelando de amor e felicidade. Corriam de mãos dadas entre as revoadas de borboletas sobre a florada da pastagem e do tapete verdejante de beldroegas. Eles estavam demasiadamente apaixonados e determinados a adocicar seus amores com deliciosos goles do prometido refresco de cajá.

  Passaram-se vários minutos e... hei-los de volta acabrunhados e sem seus costumeiros muxoxos, e sem os frutos da cajazeira. Traziam em seus semblantes uma enorme desolação por não terem cumprido com a palavra e de nem poderem ofertar do refresco prometido. Cabisbaixos e quedos ambos se sentam no mesmo lugar de antes e ficam a desgarrar os carrapichos em suas roupas e a observar os graciosos movimentos dos galináceos que continuavam a correr, cantar, ciscar, cocoricar, enfim: a modificar a triste monotonia do lugar.

  Dona Marlene passivamente a tudo assiste, mas percebendo aquele quadro de desânimo resolveu interrogá-los assim:

  – O quê é que houve com vocês? Saíram tão animados, tão amorosos e felizes, e agora estão ai moídos! Que diabos sucedeu por lá?

  – Nada mãezinha! Nada! É que não tinha nem uma cajazinha pra gente contar a história – redarguiu Margá em meio à desconfiança de sua mãe.

  – Por causa do quê demoraram tanto? – insistiu a mãe.

              – Por causa de nada, dona Marlene! – rebateu Abelardo com a voz sufocada e, quase infantil, falava olhando pro chão.

              – Demoramos só um tiquinho de nada, mãezinha! Não se aflija! Na cajazeira não tinha nem um cajá! – retomou Margá tentando abrandar as falas.

   –  Bem, eu vou indo! – desconversou Abelardo, querendo abafar o assunto. Parecia estar a escapulir de uma encrenca que ele mesmo via nascendo. Ao que dona Marlene, ríspida, surpeendeu-lhe:

   –  Nada disso, seu rapazola! Você não vai a lugar nenhum, visse? Tu vais esperar pelo Bastião pra ele se inteirar deste assombroso assunto! Vejo que tem coisa errada em suas falas, e ele vai consertar! Ah se vai! -  E pondo as mãos na cintura, ironicamente repetia: ah se vai! Ah se vai! É só esperar pra ver!

             Dona Marlene estava intransigentemente indiscutível e ainda foi excessivamente jocosa ao proferir:

             – Aaaah, nesse mato tem coelho! Ah se tem! Ninguém nos fará de bobos.

 Minutos de silêncio deslizaram como numa eternidade e a luz do meio-dia parecia ter sumido dos olhos de Abelardo. Agora ele não mais sentia o calor ardente de antes, e sim, um calafrio que invadia seus poros tal qual os arrepiantes efeitos da febre amarela.

*

– Que aconteceu por aqui, gente? Ta todo mundo mudo? – exclamou Bastião se desmontando do cavalo, e acrescentou: por aqui morreu alguém?

Todos se entreolham estremecidos. Até dona Marlene empalideceu com tão abrupta desconfiança, mas não tendo outra alternativa viável ela assim explicou:

– Bastião, me escute: o casalzinho ai – disse apontando-os – sentiu vontade de tomar um tal refresco de cajá - do que se diga, está fora de época -, e foi pro mato tirar as ditas frutas. Ficaram por lá um tempão, e agora estão ai com estas caras de sem-vergonhas que você está vendo! Que pode ter ocorrido?

Tomado por uma súbita avalanche de ódio Bastião transfigurou-se e virou-se pelo avesso. Parecia um cão raivoso. E num ato instantâneo ele desembainhou o facão que trazia atado à cintura, e rangendo os dentes virou-se para Abelardo rasgando o ar com grotescas evoluções com a arma em punho, assim urrando:

          – Escute aqui seu fi d’uma égua! Você desonrou a filha de um homem e vai ter que casar ou morrer! Entendeu?

– Mas... seu Bastião, eu . . .

– Calaaaado seu miserente, desgraçado! Ou você casa, ou morre!

               Dito isto ele pegou uma corda e amarrou uma das pontas nos punhos do rapaz e a outra ponta fixou-a na anca do seu cavalo, e assim o conduziu atado, ao enlace matrimonial, rumo à localidade onde a maior autoridade, abaixo de Deus, era o padre.

*
                Bastião seguia pela estrada cascalhosa em direção à casa paroquial quando se deparou com o senhor vigário que por ali cavalgava. Ele vinha apressado para dar a extrema-unção a um moribundo, e ao se deparar com Bastião deteve-se frente aos desesperados apelos daquele pai que enfurecido dizia-lhe:

               – Seu vigário, seu vigário, o senhor precisa casar este sujeito com a minha filha aqui, e agora: é questão da dívida de honra: ou ele casa, ou ele morre! O senhor me entende?

               O sacerdote amedrontou-se com tal brutalidade, e tentando abrandar o entrave pôs-se a dialogar, mas não obtendo solução viável ele apeou-se do cavalo, abriu uma Bíblia, e assim procedeu:

             – Pobre rapaz, jure perante esta Bíblia: você deve a honra desta infeliz moça? Sim ou não?

             Abelardo, ainda amarrado ao cavalo e tremendo dos pés à cabeça, sussurrou:

Não! Não lhe devo nada!

Bastião ruborizou-se e sacou novamente do seu facão, mas foi contido por dona Marlene que, chorosa, rogava por piedade e justiça divina.

Virando-se para Margá, o oficiante assim a interpelou:

– E você, mocinha? Jure perante a Bíblia! Foi ele?

A jovem insolentemente respondeu-lhe:

             – Como pode, meu Deus? Como pode? Nada aconteceu! Nada! Ele nunca tocou em mim!

              O religioso mirava cuidadosamente para a lâmina do facão que reluzia ao Sol, e lembrando-se da peremptória jura do pai, (“ou casa, ou morre”), preferiu o atalho mais prudente, e assim concluiu:

              – Se é para a paz desta família eu vos declaro marido e mulher em nome do Padre do Filho e do Espírito Santo, amém.

              Finda a cerimônia os noivos partiram para terras distantes onde, certamente, tiveram filhos e netos que jamais viram seus legítimos avós.

              Margá e Abelardo viveram seus amores muito distante da terra que um dia enfeitou os seus sonhos com sorrisos, borboletas, carrapichos, malvas e tapete de beldroegas e jamais se deram por vivos.



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TONHÃO, o bígamo


Um dia alguém me disse que, devido a sua autoritária postura, seria o Tonhão o sujeito mais detestado por todos os operários da obra, porém, o mais pacato dentro do alojamento, e o mais admirado na hora do bate-papo-furado.


            Onde quer que o Tonhão estivesse logo ele contava uma piada; uma prosa, uma anedota, e uma pequena plateia formada por mestres-de-obras, pedreiros e serventes se formava em sua volta para ouvi-lo e tirar proveitosas gargalhadas. Parecia mais um circo do que propriamente um canteiro de obra, e o Tonhão, que em certo momento era considerado um sujeito birrento, mandão, mal-encarado e até mesmo odiado, repentinamente se transbordava de irreverência e passava a ser um verdadeiro maestro da alegria e do bom humor, e a todos divertia com seus causos cheios de alegria.
Entre uma estória e outra ele terminava por se perder no roteiro e se adentrava em sua vida pessoal e, foi numa dessas façanhas, bem na hora de um descanso de almoço, que Tonhão contou para seus assistentes o seguinte episódio: que havia trabalhado numa fábrica bem perto de sua casa e que jamais desconfiara de ter sido espionado por sua própria esposa Izabel, a Bel, como assim a chamava. Disse que era vigiado por ela todo dia, bem na hora da saída do trabalho.
– Ou mulé ruim da mulestra e ciumenta que só o cão! – disse ele, acrescentando: certa vez eu convidei uma colega de trabalho - uma galeguinha, que não tirava os olhos de mim -, para tomarmos um guaraná no fim do expediente e a danada topou! Era ela uma bonequinha de dezoito aninhos de idade que parecia ter quinze; um lindo chuchuzinho; um anjinho; uma belezura de gata; uma flor desabrochando perfumada, e eu, com mais de quarenta anos, já viu, né?  O combinado era só para tomarmos um guaraná e nada mais! – aquela velha história esfarrapada, sabe?
Ela bonitona e boazuda que só o diabo, e eu, todo gostosão, com grana no bolso e um fuscão azul … só alegria, meu!. Ou guaraná amargo que só o diabo, cara! - continuou Tonhão para seus mais de trinta ouvintes. Todos sentados em sua volta e de ouvidos atentos.
– Tocou a sirene, fim de expediente – disseTonhão -, saí de fininho e fui correndo como um louco para o estacionamento tal como combinamos. Cara, como ela está demorando?! Faz quase uma hora e meia e... nada! Eu falava sozinho e parecia um Zé Mané abestalhado, ou mesmo um garotinho se lambendo à espera de um pirulito. Que diabo está acontecendo com a minha galeguinha? Resolvi dar alguns passos no estacionamento só para ver se nós nos víamos, mas... naaada! Cadê essa danadinha! Será que ela desistiu de mim? Comecei a preocupar-me e joguei fora a quinta guimba de cigarro. Meus olhos varriam desesperados em todas as direções do estacionamento, até quê... quem apareceu por detrás dos carros? Am? Am? Quem? Quem? Eeela! Minha linda galeguinha! Gente, meu coração parecia um carro de fórmula um! O bicho disparou que só o diabo correndo da cruz. (todos riam). – Em seguida abri a porta do fuscão e coloquei a gatinha no banco do carona e, em vez do guaraná combinado, me piquei para o motel mais próximo dali. – Ninguém me segura, iaruuuu! Hoje o bicho vai pegar! – era o quê eu dizia pra mim mesmo. Só eu me ouvia! – todos riam admirados com aquele jeitão estúpido do Tonhão narrar a prosa com sua voz rouca e trovejante, alta e estridente. Parecia um louco gesticulando com os pés e as mãos enquanto falava cuspindo nos ouvintes e arregalando um olho por detrás das lentes verdes, tipo fundo de garrafa, pois havia perdido um dos olhos num acidente e era necessário usar aqueles óculos escuros para esconder um pouco a sua feiúra: assim ele mesmo se definia).
E a prosa continua: – Rapaz! - disse Tonhão - O fuscão disparou na direção que eu e o capeta queríamos! Freei o carango bem na portaria de um motel, lá para as bandas do Tatuapé, sabe? (os ouvintes se deitavam de rir). – Ao meu lado, na portaria do motel, simultaneamente pararam um táxi e uma viatura da polícia. Só decepção, gente!  Não deu outra: gratuitamente tive que ouvir o tal do teje preso! Depois, lá no xilindró, fiquei sabendo que era tudo armação da Bel. Ela estava lá no estacionamento, me espiando, escondida atrás dos carros e chamou a polícia. Ou mulé ciumenta e ruim que só a peste! Ela me preparou aquele golpe e eu caí na armadilha igual um preá. Tomei tanta da porrada no pé do ouvido que até perdi um tímpano, e é por isso que hoje eu só escuto por uma orelha. Nunca mais esqueci do doutor delegado me dizendo: então seu Tonhão, tu gostas mesmo é de menininha, de anjinho, né? E tome-lhe pau, tome-lhe porrada! Quase morri de tanto apanhar no lombo!
Depois de contar esta incrível aventura, alguém lhe interrogou:
– E a Bel, Tonhão? Que fez com ela?
– Fala não, cara! Logo depois ela ficou sabendo que eu não ia desistir da galeguinha e que a gente já estava até amigado. Aí o bicho pegou! A Bel virou o cão. Daí pra frente ela começou a infernizar minha vida dia e noite me buzinando no ouvido para eu sair do emprego e voltar pra Alagoas. Terminei cedendo e pedi a conta do emprego, mas, como eu não sou idiota de querer perder minha galeguinha, tomei a sábia atitude: comprei quatro passagens de ônibus pra Maceió e não falei nada pra ninguém. Fiquei na minha!
O Embarque.
Me acomodei com Renato, meu garoto, em duas poltronas e, aos berros, coloquei as duas mulheres nas duas poltronas da minha frente e dei a seguinte ordem: se vocês brigarem ou discutirem durante a viagem vão entrar na porrada, certo? O coro vai comer! Estão me ouvindo? Não quero saber de desordem no trajeto! E ficamos todos mudos até Maceió. Ninguém ali se conhecia. Foi só alegria, meu! Ao chegarmos na rodoviária de Maceió coloquei as malas no bagageiro de um táxi Corcel. Sentei-me com com Renato ao lado do motorista e as duas mulheres se acomodaram no banco do fundo. Nosso destino era a casa de dona Josefa, minha sogra, que era tão ruim quanto a filha Bel. 
E falei pro motorista: 
 Toca em frente, compadre!



             O táxi começou a correr na cidade. Entra rua, sai rua, vira à direita, à esquerda e, de repente a Bel dá início a um  bate-boca imbecil, dizendo pra galeguinha, assim:
– Na casa de mamãe tu não vai entrar! Tá me ouvindo, sua descarada?
– Descarada é tu, sua cachorra! – devolveu a galeguinha.
– Cachorra é tu, sua vaca. – retrucou a Bel.
– Vaca é tu, sua galinha! – despachou a galeguinha.
– Galinha é tu, sua quenga! -  discordou a Bel.
­– Quenga é a tua mããããe! - finalizou a galeguinha acabando de uma vez por todas com o bom relacionamento. Aí o bicho pegou; o pau comeu! As duas se atracaram na porrada que o táxi pulava. Era cabelo pra todo lado. O taxi parou no meio de um cruzamento e um engarrafamento monstro inicia nos quatro sentidos da cidade. A chegada dos curiosos foi muito rápida. Tinha gente pra todo canto, gritando e assobiando! Gente que só o diabo! E no meio da rua minhas malas foram atiradas pelo taxista que, com bravura, gritava: 
– Cai fora de meu carro suas pestes, suas desgraças! 
A essa altura o “barraco” estava incontrolado. A mulherada rolava no chão e tinha trapos de roupa pra todo lado. A polícia apareceu rapidinho, rapidinho e apartou a briga. Foi uma loooucura! 


Fomos convidados  ir à delegacia, e lá uma voz trovejou para mim, assim:
– Como é mesmo o seu nome? 
– Tonhão! Quero dizer, Antonio, digo, Antonio de Souza! – falei pro doutor delegado.
– Teje preso, seu Tonhão!
– De noooovo, seu delegado! Que é que eu fiz, doutor?
– Bigamia!
– Biga o quê? Que diabo é isto? Fiz nada disso não, doutor!
– Você já já ficará sabendo! E virando-se para os tiras, ordenou: expliquem direitinho pro senhor Tonhão o que é bigamia! Não o deixe com nenhuma dúvida, certo?
– No outro dia os colegas da cela me disseram que eu estava todo roxo. Só então fiquei sabendo que a tal da bigamia era crime. Eu estava moído. Apanhei mais do que massa de fazer pão! Ou refrigerante caro do diabo! Peguei outro ônibus de volta pra cá depois que a Bel me disse: 
– Coitado de tu, Tonhão! Não te quero mais! Tu não presta! Agora pega a tua quenga e desaparece no mundo, some da minha vida! Vão pro inferno!
Pra meu arrependimento voltei pra Sampa só com a galeguinha! Perdi a Bel e o Renato, mas ganhei distância eterna da maldiçoada sogra Josefa, aquela casca de ferida!
– E a Galeguinha, onde ela foi parar, Tonhão? – alguém lhe indagou.
– Sei lá daquele diabo de saia! -  disse ele, acrescentando: -  a gente só ficou junto três meses, e durante esse tempo ela me enfeitou com um belo par de chifre com um cobrador de ônibus. Grande aventura que eu fiz, não? E tudo por causa de um refrigerante.
A sirene tocou, e alguém gritou:
– Fim do descanso! Vamos ao trabalho, pessoal!
E todos se levantaram às gargalhadas.




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Coisas do Brasil

                                            
NUMA PROVA RECLASSIFICATÓRIA, NO ANO DE  2003, aplicou-se uma redação para ALUNOS da 8ª série do Ensino Fundamental, cujo objetivo seria promove-los para o Ensino Médio, e o motivo foi a idade dos mesmos.

Tema da redação:

Saí para passear, de repente…


Leia (transcrito na íntegra) o quê essas duas feras responderam:

  (Aluno 1)
“  Sai para passear derepente acomteceu um grade assalto nece assalto teve tiro teio muitas pessoa ficaram dezesperada com aquilo e eu sem saber o que fazer resovi  desfarsadamente chamar a policia peguei o telefone e disquei para a policia estava nervoso queria soutar o telefone mais uma coiza  rúim mim  impedia o policial atemdeu o telefone eu nervoso dice que estava acontece
ndo um grande assauto com muitos tiro teio ele pedil o endereso do local onde estava acontecendo o assauto eu dei até que os policiaes  chegaro mais o assauto ja avia acabado e os policiais foram em  bora ja não dava mais tempo para mim ir para festa emtão voutei para casa para refretir a cabeça e refretir”. FIM.             
Aelson – 18 anos



(Aluno 2)
"Sai pra passiar e derrepente
ei vi a minha namorada saino com
outro minino e eu fiquei com ra
iva e parti pra cima dele de
i  um soco na cara dele e fique
i brigando com ele e veio meu
amigo para mi separar e ele
perguntou? Porque você mi bateu
porque você ta ficando com a minh
a garota e ela disse eu fiquei
com ele porque você ta enpli
cando com a minha mãe e so
por causa disso você vai fic
car com ele sim e no dia se-
guinte ele ficou brigando com
ela e eu que moro na casa
do lado ouvir tudo e ela critan
do e ele bateno nela chingan
do e eu sai da minha casa e
fui la e vi e quando ele ia
da um soco nela eu cegurei a mão
dele puis ele para fora da casa
dela e ela me pediu perdão e
eu continuei namorando ela". -  FIM  

Felipe – 18 anos


E ambos foram gloriosamente promovidos com direito a festa de formatura, certificado e diploma.
QUE BELEZA, NÃO!?


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                     O Direito e o Avesso 
     
    Foi numa tardezinha quente de um trinta e um de dezembro, a bordo de uma barcaça e bem acompanhado, que realizei um passeio náutico entre a cidade do Rio de Janeiro e Niterói, numa espaventosa e reluzente viagem de estupefata beleza pela encantada Baía de Guanabara onde, vivenciei, sem dúvida, um dos mais belos e agradáveis momentos.

         Na popa da embarcação assistíamos deslumbrados a um belíssimo final de tarde de um último dia de ano, enquanto uma agradável brisa soprava suavemente esvoaçando os nossos cabelos no ar.


          Me envaideci com a radiante beleza do momento, o quê não nos permitia a mudes. Por isso comentávamos de tudo expostos às vistas: das aves marinhas sobrevoando suavemente sobre nossas cabeças; dos rastros de espuma deixados pelos aero-barcos; dos gigantescos aviões indo vagarosamente em direção à pista; do esplendor da ponte sobre o mar; do espetacular pôr-do-sol por detrás da metrópole; da beleza encantadora da Ilha Fiscal; do bonde do pão-de-açúcar rasgando as nuvem; da magnitude e esplendorosa visão do Cristo Redentor abraçando a cidade; das luzes de holofotes riscando o céu; da silhueta dos enormes navios próximos e à distância; dos turistas a bordo com suas falas incompreensíveis; da alegria dos jovens, no saguão cantando canções alusivas ao Ano Novo; das batucadas no salão inferior da nau, repleta de passageiros e, por fim, da nostalgia irradiada pela canção francesa "Sur le ciel de Paris" magnificamente executada no acordeom de um artista anônimo que animava os passageiros, o quê resultou num respeitoso silêncio de todos, que, agradecidos com a belíssima canção, agraciaram o músico com uma espetacular salva de palmas no exato momento em que a embarcação era atracada no cais do porto.
            Foi uma tarde de encantamentos.

          Aquele era um dos dias de grande significância do calendário carioca: era o dia do reluzente reveillon, e por isso a cidade mostrava-se frívola devido a correria de multidões que se dirigiam à beira-mar para lá pernoitarem brindando a chegada de mais um Ano Novo. Uma festa quase que folclórica para a cidade do Rio, e nós queríamos também testemunhar daquele júbilo popular e, para tal, saímos da embarcação em busca de entretenimentos, mas, em pouco tempo estávamos imobilizados a poucos metros da Praia de Copacabana num monstruoso engarrafamento não dígino para a cidade maravilhosa. 

          Ficamos horas inertes trancados no automóvel e sem nenhuma emoção, apenas ouvíamos buzinaços e tínhamos que, por obrigação, assistirmos à tresloucada correria do povo carregando esteiras, isopores com bebidas e alimentos, cadeiras, sacolas e ramalhetes multicoloridos para durante a madrugada presentearem honrosa e festivamente a rainha do mar.


          Dentro do automóvel assistíamos a tudo, e, foi nesse ínterim de restrita liberdade de ação que presenciei a um espetáculo indigno para o festivo momento: o tormento de um mendigo sob a marquise de um edifício à poucos metros de nós.  Ele abria uma sacola de plástico e dela retirava uma banana nanica – provavelmente sua única comilança do reveillon –, e, ostentando-a numa aparente desmotivação da própria vida, ameaçava comê-la, mas, desolado e pensativo a guardava na sacola. Entristeceu-me ver aquela cena de brutalidade social em plena sala de visita do Brasil e, dali, eu tive o desprazer de assistir a fome corroendo um homem que parecia estar padecendo o seu próprio tormento.  Seu semblante era triste, pois o valor do nada o denegria e a tortura moral o definhava.

          Passavam-se alguns instantes e o homem repetia a tormentosa cena: olhava para a banana, e depois a guardava. Ela certamente lhe serviria para o próximo desjejum, ou, quem sabe: seria seu único alimento do dia seguinte.

        O homem repetiu o lamentável ritual de não se alimentar com a fruta por varias vezes, enquanto que os transeuntes que por ele passavam plenamente o ignoravam: ele não era ninguém; era um nada. Era um mendigo que – para muitos dali -, talvez não tivesse sequer direito à própria existência. Um esmoler naquela plaga talvez fosse um indesejado, pois me pareceu ser ele um insignificante frente aos olhares. Parecia um cão faminto em meio à fartura e a alegria de milhares que se dirigiam à requintada festa de luxo, luzes, prazeres, comilanças, bebedeiras e esplendor. Tudo a se transcorrer em pleno tapete arenoso do Oceano Atlântico.

          Olhei ao meu entorno e vi que aquele homem não estava só. Haviam inúmeros deles, e todos cabisbaixos e seminus a esperarem por um adjutório que nunca viria. Convenci-me de que eles não eram humanos em toda plenitude, pois algo de essencial lhes era negado: a dignidade.

          Vi a miséria batendo na porta da opulência, e como sempre ambas se distavam anos-luz da verdadeira convivência humana, onde a indiferença permanecia arrogante no cume dos obstinados desejos. E a beleza que há pouco me deslumbrara sobre o mar, agora, ofuscara-se perante o bem e o mal, e tudo me pareceu insolente, incolor e mísero.

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AO PAI ETERNO




Senhor Deuscriador do céu e da Terra.
Poderoso é o Vosso nome e grande é a Vossa misericórdia.
Em nome do Vosso filho, Jesus, recorro a Vós
para pedir bênçãos à minha vida.


Que a Sua divina luz incida sobre mim
e com Vossas mãos retirai todo mal,
todos os problemas e todos os perigos
que estejam ao meu redor.


Que as forças negativas que me abatem
e me entristecem, se desfaçam ao sopro da Vossa benção,
e que o Vosso poder destrua todas as barreiras
que impedem o meu progresso e, do céu,
Vossas virtudes penetrem no meu ser
dando-me paz, saúde e prosperidade


Abra, Senhor, os meus caminhos,
para que meus passos sejam bem dirigidos
e eu não tropece na caminhada da vida.
E que meu viver, meu lar e meu trabalho
sejam por Vós abençoados.


Entrego-me em Vossas mãos poderosas
na certeza de que tudo vou alcançar e
sou agradecido, em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo.
Amém!

Autor –   Leandro Mendes da Cruz     –  meu filho